sexta-feira, 14 de novembro de 2014

CRÔNICA DO DIA: O PERDÃO.

Duas amigas me pediram para ler um livro sobre um pai atormentado pelo assassinato da filhinha caçula. Depois de três anos a procura do corpo da criança e cheio de ódio, rancor e indignação, esse homem tem um encontro com aquele a quem dirige sua mais veemente intolerância: DEUS. 

Assim que o livro me chegou às mãos, comecei a lê-lo com uma certa má vontade e pensava: "hum, esse livro deve ser triste, amargo, sofrido..." Bem, mas decidi ir frente. Afinal, minhas duas amigas queriam minha opinião sobre um determinado ponto da história. Uma achava que o tal homem havia morrido e a outra que ele viveu um sonho. Não vou contar aqui o final, mas posso adiantar para vocês que o livro me fez parar algumas (ou muitas) vezes para refletir. 

Sim, a história é triste. Sofrida? Muito. Quem pode medir a dor de um pai, que perde a filha brutalmente assassinada? Ninguém. Quem, no seu íntimo, não acharia que Deus é injusto e cruel por permitir tamanha atrocidade? Quem já viveu experiências semelhantes pode responder isso melhor do que qualquer pessoa. Quem tem filhos, fica profundamente incomodado com a história. E também, por que não dizer, revoltado. A grande pergunta que se faz é: existe perdão para quem comete um crime dessa envergadura? Você perdoaria? Em tempos de intolerância por todos os lados nas mais pequeninas coisas, em um caso como esse, perdoar, certamente, seria muito difícil.

Algumas religiões pregam o perdão como um esquecimento do passado, orientando que se deve colocar um véu sobre ele. Não um véu transparente, mas sim um que tenha um tecido mais espesso. Isto é, colocar uma espécie de ponto final, "uma pedra no assunto". "Será que é possível?", perguntei a mim mesma. O livro indica uma possibilidade bastante interessante:

"Perdoar não significa esquecer. Significa soltar a garganta da outra pessoa."

Fiquei intrigada com a metáfora, caros amigos. Como seria soltar a garganta da outra pessoa? Que atitude determinaria que eu estaria soltando a garganta do meu algoz? Deus, ou Papai como é chamado no livro, ouvindo meu questionamento, continua:

"O perdão não estabelece um relacionamento. O perdão existe em primeiro lugar para aquele que perdoa, para liberá-lo de algo que vai destruí-lo, que vai acabar com sua alegria e capacidade de amar integralmente e abertamente. O perdão não exige de modo algum que você confie naquele a quem perdoou. A não ser que as pessoas falem a verdade sobre o que fizeram e mudem a mente e o comportamento, não é possível um relacionamento de confiança. O que ele fez foi terrível. A raiva é a resposta certa para algo tão errado. Mas não deixe que a raiva, a dor e a perda que você sente o impeçam de perdoar e de tirar as mãos do pescoço dele."

Pode ser que eu esteja errada, mas acho que o Deus do autor William P. Young, no livro "A Cabana", quer dizer que se não soltarmos a garganta do algoz, nós iremos morrer com ele, afogados na mágoa, no ressentimento, no ódio e no rancor. Até aí, foi fácil, certo? No caso desse pai, não é difícil entender os seus sentimentos e suas atitudes revoltadas. Afinal, sua experiência é triste, traumática e sofrida. Mas no dia a dia temos a oportunidade de "soltar a garganta" de vários algozes, nas situações mais corriqueiras. 
O ambiente familiar e o de trabalho são os melhores lugares para se exercitar o perdão e a tolerância. Ao mesmo tempo, podem ser ainda mais difíceis para a prática deste exercício. No caso do assassino, nós, provavelmente, não iremos conviver com ele diariamente. Mas no caso de um irmão, parente ou colega de trabalho, teremos que olhá-lo com uma frequência bem maior do que desejaríamos. E aí, será que conseguiremos? 

Nosso cotidiano é recheado de pequenas vilanias, aparentemente inofensivas, mas que se descobertas, podem estabelecer um abismo nos relacionamentos. Falar mal de um colega, mentir para os companheiros, maltratar irmãos, filhos, pais... A lista é grande demais. Quantas vezes nos sentimos magoados com alguma atitude e as nossas reações são as mais diversas possíveis. Uns nunca mais se falam. Outros fingem esquecer, mas seguem alimentando o próprio interior de um rancor mudo, dolorido, ressentido. Fiquei pensando como seria "tirar as mãos do pescoço" desse algoz sutil, mas ferino? Não sei se cheguei ao certo a alguma conclusão. 

Sabe aquele amigo que mora no mais íntimo do seu coração? Pois é, um belo dia, ele diz uma palavra, ou toma alguma atitude que fere profundamente a sua sensibilidade e abala um sentimento que parecia forte. Esse relacionamento fica estremecido e nada parece conseguir resgatar os sentimentos de outrora. O que fazer com essa mágoa, esse ressentimento? As opções não são muitas. Você pode passar dias desejando que alguém seja capaz de feri-lo tanto quanto ele te feriu. Ou fingir que o ignora, mas mantendo a vigilância sobre tudo que lhe acontece para ver se algo está fazendo com que ele sofra de alguma forma. Ou, simplesmente, riscá-lo da sua vida e fazer de conta que ele nunca fez parte dela. Enfim, muitas reações para apenas uma ação. Todas, de certa forma, não deixam você tirar as mãos do pescoço desse inimigo sutil e tão presente, não é mesmo?

Mas como arrancar a dor, o rancor e o ressentimento causados por tão grande decepção? Resposta difícil. Quando somos traídos, muitas vezes temos até dificuldade em tocar no assunto. Machuca, fere, dói. Pois é, eu acho que aí é que está o erro. Trancar dentro de nós mesmos emoções tão dolorosas nos fará para sempre prisioneiros desse sentimento cinzento e obscuro. Temos que arrancá-lo de lá, custe o que custar. Mas como?

Pode parecer loucura, mas quando não se consegue verbalizar a dor para alguém real e concreto, talvez falar consigo mesmo, ou com o espelho possa ajudar. Verdade. Colocar para fora em voz alta pode ajudar a limpar o coração e a mente dessa sujeira rancorosa, que só vai fazer mal, em primeiro lugar, a nós mesmos. É uma tentativa. Com o coração leve e limpo, talvez fique mais fácil seguir em frente, tentando sempre não esperar mais das pessoas do que elas podem nos dar. Cada um tem que encontrar a sua forma de "tirar as mãos da garganta do outro". 

Uma frase me vem à cabeça neste momento. A primeira vez que a ouvi foi em uma palestra, que pretendia explicar por que as pessoas se decepcionam. O palestrante disse: "nós nos decepcionamos com as pessoas porque as idealizamos". É verdade. Sempre esperamos que as pessoas sejam ou façam aquilo que NÓS imaginamos, quando, na realidade, cada indivíduo é um ser único e, como tal, age de acordo com suas próprias crenças e experiências. 

Bem, talvez, o grande exercício diário a ser feito seja mesmo tentar não idealizar ninguém ou nenhuma situação. E, se ainda assim, situações ocorrerem que exijam o nosso esforço de compreensão, que consigamos, então, "tirar as mãos da garganta do nosso algoz". Buscar justiça, no caso do pai mencionado no livro, para impedir que o mal se propague e fira outras pessoas. Mas não vingança. Talvez, quem sabe, essa seja uma forma de alcançar a desejada libertação. Talvez... Quem sabe...