domingo, 5 de abril de 2015

CRÔNICA DO DIA: UMA NOVA (VELHA) FORMA DE ESCRAVIDÃO?

Uma matéria me chamou atenção na revista Super Interessante de Fevereiro de 2015. Uma matéria pequena, mas que me fez refletir bastante no dia em que foi lida.


Nós, brasileiros, quando ouvimos falar sobre a escravidão no Brasil, nossa memória nos remete imediatamente ao nosso passado, que parece muito distante. É como se viajássemos em segundos para um tempo que ficou bem lá atrás. E sempre vem aquela pergunta, será que a escravidão acabou mesmo? Ou será que ela adquiriu novos contornos? Sim, porque um trabalhador que não recebe justamente por seu trabalho, pode parecer um escravo da era moderna, não pode?



Todos já ouvimos falar sobre a precariedade vivida pelos trabalhadores chineses. Na referida matéria, intitulada A China da China, na coluna Super Novas, o assunto era exatamente sobre isso. "Operário chinês come o pão que o diabo amassou. Ganha pouco, trabalha demais, vive mal", constatava Patrícia Noriyassu em seu texto. Essa situação acarretou, em 2010, "14 suicídios na Foxconn, que produz os gadgets da Apple". Esse fato teria preocupado o governo chinês, que a partir de então, resolveu dar uma incrementada nas questões trabalhistas e chegou a aumentar o salário mínimo em 25% nos últimos dois anos (algo em torno de R$ 766,00), principalmente na região de Shenzen, onde se concentram a maior parte das fábricas de tecnologia. 

Até aí tudo parecia ir bem, afinal já havia passado da hora de alguma coisa ser feita, certo? Errado. Os empresários chineses, é claro, não gostaram das mudanças. Não porque viram sua margem de lucro diminuir. Não. Imagina! E sim porque, segundo eles, com um salário mínimo desses, não poderiam manter os mesmos preços baixos que conhecemos. Foi então que tiveram uma ideia brilhante: migrar suas empresas para lugares onde poderiam manter esses preços convidativos para o consumidor, aliados ao baixo custo da mão de obra, garantindo a felicidade de todos. De todos?... E que lugar seria esse? Adivinhem! Interior da China e... África! Sim, África! Nossa velha conhecida fornecedora, dos idos tempos, de mão de obra barata, ou melhor dizendo, gratuita. 




Com um salário mínimo bem atrativo para os empresários, em torno de 30 a 50 dólares por mês, mais de 2.500 empresas chinesas já migraram para o continente africano. Países como Nigéria, África do Sul, Zâmbia, Gana e Etiópia já são responsáveis por grande parte da produção de calçados, roupas, material de construção, eletrodomésticos e até automóveis. Patrícia alerta ainda que, em um futuro bem próximo, iremos começar a ler, com muito mais frequência, a inscrição Made in Africa, em lugar da nossa velha conhecida Made in China.

Mais uma vez o povo africano serve aos interesses comerciais dos povos que vivem além de suas fronteiras. É bem verdade que a ida dessas empresas para lá pode ajudar de alguma forma ao desenvolvimento deles. Mas esse desenvolvimento vai vir carregado de muito sacrifício de um povo acostumado a, literalmente, "matar vários leões por dia". Até que relações de trabalho mais justas sejam uma constante, quantos já não terão sofrido a dura realidade da exploração de um povo carente de tudo: saúde, moradia, comida, segurança, educação, entre tantas outras coisas.

Sempre vemos nos noticiários a luta contra a exploração do trabalho escravo, mas ao mesmo tempo, também assistimos, sentados e impotentes, a ida de grandes empresas ocidentais, não só asiáticas, para essas terras, devido aos grandes incentivos fiscais, o baixo custo da mão de obra e a garantia de lucro certo. Com isso, fica quase impossível deixar de adquirir produtos com essa procedência, numa tentativa quase pueril de impedir essa escravidão moderna.

O ser humano é por demais paradoxal. Mesmo aqueles que enriquecem algumas postagens nas redes sociais com seus comentários politicamente corretos, no dia a dia podem valer-se de facilidades e/ou vantagens, com o objetivo de lucrar de alguma forma em situações até corriqueiras. Em nome da luta contra os abusos da classe política, muitos lançam mão de certos artifícios, como o "gato" no consumo da energia elétrica, na tv a cabo e por aí vai, para economizar e desfrutar de um serviço pelo qual não está pagando. Isso dentro de um universo mais restrito. Imagina o que não fazem aquelas pessoas que detém o poder sobre muitos. Parece repetitivo lembrar de algumas pessoas que começaram suas vidas em situações bem desfavoráveis e que ao conquistarem uma situação econômica invejável, agem exatamente como aqueles que já estavam no topo da pirâmide. Isso é muito comum.

Na época da escravidão no Brasil, alguns poucos negros (uma minoria), já libertos, conseguiram destacar-se e enriqueceram. E ao verem-se em situação confortável, também adquiriram escravos para servi-los. Parece curioso, mas na própria África de outrora, os intermediários do tráfico negreiro, aqueles responsáveis por levar a "carga" humana até os exploradores/colonizadores, eram os próprios africanos. 

Será que o que vemos acontecendo agora na China, na África e muitas vezes até aqui mesmo no Brasil, é diferente dos idos tempos? Alguns poucos lucrando muito à custa de um trabalho quase servil. Será que seremos sempre assim? Será que nunca poderemos imaginar o quão difícil é viver com um salário de 30 dólares, quando nós mesmos, apesar de todas as dificuldades, ainda desfrutamos do próprio conforto da tecnologia, por exemplo, que permite que viajemos pelo mundo ao alcance de um clique? Para aquele povo que recebe um salário mínimo como esse, a maravilha do mundo globalizado chega a ser um "luxo".


Somos todos, com certeza, contra o trabalho escravo, mas adoramos os preços baixíssimos oriundos dessas produções, não é verdade? Afinal, adquirindo um produto barato, nos sobra mais dinheiro para usufruir de outras facilidades e vantagens. E assim a vida segue seu curso.



Eu queria que tudo fosse diferente. Que as pessoas não fossem privadas do básico e que pudessem, algumas (ou muitas) vezes, adquirir um pouco do supérfluo, que faz parte da vida e também alimenta a economia mundial. Há tempos que tenho a mania de olhar sempre a procedência dos produtos e, dia desses, fiquei feliz da vida quando encontrei um prendedor de cabelo com a inscrição made in France. Só faltei dar pulos de alegria, apesar do preço pouco convidativo. Mas ali, com aquele pequeno artefato em minhas mãos, pensei: "o trabalhador que o produziu deve levar uma vida mais digna". Assim espero. Assim como também espero que as relações de trabalho possam ser melhores nos países em desenvolvimento. Que em algum dia não precisemos mais produzir e lucrar à custa da exploração de alguns. 

8 comentários:

  1. Enquanto nossa sociedade privilegiar o TER e não o SER, pouca ou nenhuma importância será dada a esta questão. Veja quantas denúncias de trabalho escravo já tivemos contra a Apple e não percebemos nenhum movimento de boicote a empresa. Simplesmente toleramos estas mazelas para continuarmos consumindo. Quanto a Africa, não acredito que esta migração trará qualquer desenvolvimento. Citando o passado, qual foi o grande avanço que a africa teve entre os séculos XVI e XIX? Excelente post!!!

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    1. É verdade, Denis Rodrigues, não percebemos o quanto uma pequena atitude nossa pode influenciar no todo. Muitas vezes, para estarmos na "crista da onda", não nos damos conta do quanto nossas ações podem estar prejudicando a muitos. Só discordo de você em um ponto, acho que a ida das empresas para essas localidades pode ajudar de alguma forma o despertar das consciências para a situação de exploração em que vivem e, quem sabe um dia, eles possam conquistar o direito de reivindicar por melhores condições de trabalho em todos os sentidos. Muito obrigada por seu comentário!

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  2. Belo texto Fátima e muito verdadeiro. Bjs. Nitinha

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    1. Obrigada, Nitinha!!! Que bom que gostou! Um grande abraço!

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  3. Muito bom Fátima!
    Na minha opinião, é inacreditável que nos dias de hoje, apesar de muitos tratados internacionais de combate à escravidão contemporânea, alguns lugares ainda aceitem não só a entrada como a permanência desses aliciadores.
    Sabe-se também que jovens e mulheres muito pobres continuam sendo os preferidos para o trabalho escravo. Triste.

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    1. É verdade, Valéria Jacob, os pobres do mundo são as maiores vítimas das mazelas da humanidade. Um grande abraço!

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  4. Amiga li de manhã, mas só agora relaxei para comentar. Mas comentar mais o quê, face a tudo já lido acima? Lucidez, objetividade , sensibilidade e informação são suas marcas. Obrigada por oprtunizar-me colocar sua crônica no meu face. Preciso frequentar mais seu espaço. Tereza Vieira

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    1. Obrigada, Tereza, por suas gentis palavras!!! Ficarei muito feliz com a frequência da sua visita aqui no Blog! Um grande abraço!

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